BENFEITORES E A SOLIDARIEDADE

Enquanto a cidade sofre as consequências da pandemia do coronavirus, com mães desesperadas a procurar os hospitais públicos e dezenas de idosos a arder em febre nas unidades intensivas e nas enfermarias, à espera de um médico ou de um comprimido, não é fora de propósito evocar a memória de alguns benfeitores que noutras épocas, sensíveis aos dramas da pobreza, da doença e da velhice, construíram hospitais e ambulatórios, lares da terceira idade e educandários, antecipando-se à ação do Estado no esforço de combater a exclusão e a doença, a orfandade e a invalidez.

Até hoje muitas dessas Obras continuam voltadas para os que precisam – pois na seqüência dos fundadores foram-se constituindo patrimônios, graças às doações e aos codicilos, de cujas rendas passou a vir a garantia da sua permanência e funcionamento. Das “Misericórdias” às “Beneficências”, das Obras de Assistência às Caixas de Socorros Mútuos, dos asilos com nomes que se perderam na memória urbana, às escolas que ainda conservam na fachada o cognome do infante de Sagres, deparamo-nos na cidade, marcada pela corrupção, por egoísmos e violências, com muitos desses lugares onde se pratica a solidariedade e o bem-fazer, onde se cuida dos velhos sem casa e sem arrimo, onde se recolhem crianças órfãs e jovens desorientados, umas, para aprenderem a ler e a escrever, e outros, para se livrarem das recaídas no vício e nos desencantos da vida.

Por nos dizer mais de perto, poderíamos descrever o que se faz diariamente na Caixa de Socorros D. Pedro V, no Lar dos velhinhos que funciona na Ladeira do Tabajaras, ou no ambulatório da Avenida Marechal Floriano, onde todos os dias dezenas de pobres procuram consulta médica e remédios de graça; ou, ainda, nas salas de aula do Colégio Sagres.

Por estarmos acostumados, não reparamos na dimensão do que é feito – e na importância das instituições mantenedoras desses serviços. Mas emocionam-nos os beijos das crianças, as lágrimas dos velhos ou os olhares de esperança dos jovens. O Estado não toma conhecimento do que se passa e para não se envergonhar do desinteresse faz, a cada passo, exigências burocráticas. Como se porventura fosse mais meritório o lançamento do imposto ou o preenchimento do formulário do que a vida de um pobre, o acolhimento de um desgraçado ou o abrigo de um morador da rua.

É claro que não se pode deixar o Poder público livrar-se dos compromissos que tem perante a população, sobretudo em setores fundamentais como a saúde, a assistência, a educação, a segurança, etc. Mas se a maior parte dessas obrigações recai sobre o Estado – e, para isso, cobra tributos e tem nas mãos a máquina administrativa – nem assim a sociedade civil deve omitir-se, seja no reconhecimento do que é realizado por instituições privadas em benefício dos que precisam, seja no apoio ao trabalho de solidariedade cujas bênçãos e resultados se refletem nas camadas mais pobres e sofridas da população. Os próprios governos deveriam ser os primeiros a estimular os movimentos trespassados pelo verdadeiro espírito cristão e pelo sentimento de ajuda ao próximo. No entanto, como na parábola do Reino dos Céus, esquecem-se de que não é pelo fato de haver joio entre o trigo, que devemos suspender a sementeira ou maltratar os semeadores.

FRANCISCO GOMES DA COSTA

PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO LUÍS DE CAMÕES

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